domingo, 4 de setembro de 2011
As línguas estrangeiras (Texto de Francisco Bosco)
Lacan afirmava não haver um objeto com o qual se possa manter uma relação permanente de prazer. Mas, ressalva Barthes, "para o escritor esse objeto existe: é a língua materna". Nenhuma outra frase ilumina melhor a relação de amor e ódio (mais esse que aquele) que tenho com as línguas estrangeiras. Estar fora do português brasileiro é para mim como perder essa relação, de completude, da criança com a mãe. Então a língua se torna propriamente um objeto, apartado de mim, a que tento, sem jamais ter conseguido, integrar-me. "Estar fora do português brasileiro", disse acima; com efeito, neste caso a diferença, existente na nossa língua, entre ser e estar é crucial - pois só aqui, nessa língua, eu sou; nas outras eu apenas estou.
Estudo inglês desde criança, já passei uma temporada nos EUA, estou sempre em contato com a língua inglesa, lendo livros, vendo filmes, eventualmente falando com estrangeiros. É a língua estrangeira que conheço melhor; e ainda assim há uma diferença decisiva entre minha experiência com ela e a que tenho no nosso português. Como escritor, sou a nossa língua. Não há qualquer outro atributo, em mim, além da intimidade que tenho com o português, pelo qual eu me reconheça tanto. Logo, quando em língua estrangeira, deixo de ser eu, mas essa experiência de despersonalização, tão alegre em outros registros da existência, experimento-a aí como uma tristeza: pois torno-me então uma versão pálida, impotente, de mim mesmo. Não sou mais eu, mas também não chego a ser ninguém (como aqui, escrevendo, onde ser eu é a chance, por intimidade profunda com a língua, de tornar-me ninguém).
O escritor é aquele que sabe o peso de cada palavra, é quem fez de si um instrumento de alta precisão, um semantômetro, capaz de submeter cada palavra, em frações infinitesimais de um segundo, a cálculos complexos que levam em conta as suas significações possíveis, o contexto (por sua vez formado por outras palavras, submetidas ao mesmo cálculo, ao mesmo tempo), que determinará sua significação, a história de seu uso, a sua incidência atual na língua falada e escrita, entre muitas outras variáveis. É esse instrumento que, ao contato com a língua estrangeira, desafina. A língua sai do registro da alta definição para o da imagem desfocada. Quem tinha uma visão 20/2 (visão do falcão) passa a sofrer de miopia semântica. Para o escritor que sou, portanto, estar em língua estrangeira é como, para um craque de futebol, jogar com uma bola oval; para um passista, sambar na areia.
Sabe-se, entretanto, que há escritores apaixonados por línguas estrangeiras. Há a curiosa espécie dos tradutores, e ainda a exótica espécie dos trocalínguas, aqueles que passaram a escrever em outro idioma. Considero os primeiros mais radicais. Uma língua é como uma cidade: para conhecê-la além de sua epiderme, é preciso habitá-la. Assim como somos turistas num país estrangeiro que visitamos brevemente, somos turistas numa língua de um país que não habitamos, e podemos ser eternos turistas (como eu sou nas poucas línguas que falo). Mas os tradutores (os que nunca moraram no país da língua a traduzir) são essa espécie paradoxal de moradores a distância. Conhecem a língua estrangeira como se percorressem, minuciosamente, um google street view, explorando cada viela, cada beco, cada acidente do relevo. (Espanto: mas como saberão o que se diz na rua, e só nela se ouve?)
Os escritores trocalínguas - Beckett, Nabokov - são mais compreensíveis. É que eles mudaram de país, e a vivência na língua nova, o dia a dia (a supressão dos hífens deprimiu essa expressão) de sua prática, permitiu-lhes, pouco a pouco, afinar seu instrumento de pesar as palavras, e assim puderam escrever.
Quanto a mim, tenho prazer quando percebo minha evolução no conhecimento de uma língua estrangeira. Mas sempre esbarro com meus limites. Posso ler quase tudo em inglês ou francês. Textos teóricos são os mais fáceis, pois o vocabulário é mais restrito e muitas de suas palavras têm a mesma origem grega que seus correpondentes em português, logo a morfologia é próxima e reconhecível. Romances, posso lê-los muito bem quando são do século XIX (há exceções, como o difícil Flaubert); mas a ficção do alto modernismo é árdua (Joyce, Woolf, Faulkner). Mas romances já são, por si só, mais difíceis que teoria. Uma tradutora de Heidegger conta que, quando foi a Berlim pela primeira vez, deu-se conta de que não sabia pedir um pão. Num romance, como na vida, não existe o pão (o pão platônico): existe o pão francês, o pão careca, o árabe, etc. Já a poesia, essa é desanimadora. A poesia é uma língua estrangeira dentro da língua. É a periferia da língua. É preciso morar na língua, mesmo que a distância, para ler sua poesia.
Tenho muito prazer ao ler em voz alta textos em outros idiomas (o que não costumo fazer em português). Torno-me então estrangeiro pela boca, deixo um povo inteiro invadir e se apossar da minha cavidade bucal. Quando, contudo, tenho que falar a língua estrangeira, perco muito desse prazer, pois estou tão concentrado em me expressar adequadamente (em vão) que não consigo me deleitar com os fonemas estranhos.
Guardei o pior para o fim. A diferença fundamental entre ler textos em português e em outros idiomas é que, naquele, sempre sei por que não sei, enquanto que, nesses, nunca sei por que não sei. Só numa língua estrangeira pode-se ser ignorante ao quadrado.
FRANCISCO BOSCO é doutor em teoria literária pela UFRJ e colunista do jornal O Globo. Este texto foi publicado originalmente no Jornal O Globo (ago´2011). Que escritor maravilhoso!
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